A questão do sofrimento é uma dos pontos centrais em todas as religiões. É o sofrimento que dá a ideia de evolução para o espiritismo e de Karma para as religiões orientais. É o sofrimento da nação de Israel que evidencia sua culpa diante de Deus e motiva judeus a chorarem no Muro das Lamentações.
No cristianismo, ótica pela qual analisaremos o sofrimento, há dois ótimos livros do autor C. S. Lewis sobre o tema: "O problema do sofrimento" e "Anatomia de uma dor", extremamente recomendados.
Eu, porém, como leigo, me atrevi a escrever essa série após a provocação dos Pastores Diego e Júnior, do
Biblecast, e do Isaque, do
Cristãos Cansados. Na primeira parte levantei os principais pontos colocados pelos pastores em seu programa, que passo a analisar a seguir:
Primeiro Ponto: reconhecer (aceitar) o sofrimento:
"No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, Eu venci o mundo" (João 16:33).
Enquanto a teologia da prosperidade repudia o sofrimento, há um perigo evidente no outro extremo, o de que é o sofrimento o nosso caminho para os céus. Aos 27 minutos os oradores do Biblecast dizem que é necessário aceitar, para o bem, inclusive, do cristianismo, que, às vezes, o pior vai acontecer.
Tal posição é corretíssima e a Bíblia está repleta de exemplos disso. as mortes de João Batista, Estêvão e Tiago, nos mostram essa realidade. É importante deixar claro que a aceitação do sofrimento é uma necessidade para os que pretendem seguir a Deus. Com razão, os pastores afirmam diversas vezes que querer que todas as nossas ações tenham resultados aparentemente benéficos é um erro.
Para que possamos reconhecer e aceitar o sofrimento, precisamos entender a razão da existência de todo o mal. dor e sofrimento.
C.S. Lewis trata disso de maneira extensa em
o Problema do sofrimento. O mal é causado pelas nossas escolhas, pelo nosso livre-arbítrio. "
Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará. Gálatas 6:7". Nossas ações tem consequências, e não há como escapar delas. Num segundo nível, as ações dos outros tem consequências sobre nós - o que é alheio à nossa vontade, mas, uma vez que Deus permite a liberdade de todos os seres, não vai impedir que alguém, deliberadamente ou não, nos faça mal. é a regra dEle. Um terceiro nível tem a ver com o Grande Conflito em que nos metemos. Sofremos porque o mundo inteiro sofre. "Ai dos que habitam na terra e no mar; porque o diabo desceu a vós, e tem grande ira, sabendo que já tem pouco tempo. Apocalipse 12:12."
Por outro lado, Deus não se furta de intervir na realidade, se assim fosse, admitiríamos o Deísmo - Deus fez o relógio (mundo), deu corda nele e se mandou, como quem dissesse: Volto mais tarde, Não Perturbe!
Os pastores admitem a ação de Deus neste mundo durante todo o programa, citando respostas a orações e outras intervenções divinas. As palavras de ouro aqui são os advérbios de intensidade, mas vamos à isso no terceiro ponto.
O problema aqui está com a ideia de que Deus não responde.
Embora as coisas realmente possam piorar, Deus está sempre a nos responder. Há dois casos emblemáticos sobre o silêncio de Deus ante ao desespero humano. O de Saul é o mais clássico. Em I Samuel 28 ele busca revelação divina para uma batalha,"E perguntou Saul ao Senhor, porém o Senhor não lhe respondeu, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas. 1 Samuel 28:6".
A Angústia de Saul e o silêncio de Deus são descritos da seguinte forma pela escritora Ellen White:
"Poderia ele esperar ser atendido por Deus, quando interrompera os condutos de comunicação que o Céu determinara? Afastara pelo seu pecado o Espírito da graça, e poderia ser atendido por sonhos e revelações do Senhor? Saul não se voltou a Deus com humildade e arrependimento. Não era o perdão do pecado e a reconciliação com Deus, o que ele buscava, mas o livramento de seus adversários. Pela sua obstinação e rebelião, separara-se de Deus. Não poderia voltar a não ser por meio do arrependimento e contrição; mas o orgulhoso rei, em sua angústia e desespero, resolveu buscar auxílio de outra fonte."
Tal colocação faz todo sentido à luz da promessa de Deus de que "
E buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes com todo o vosso coração. Jeremias 29:13". Uma vez que é o desespero, sem arrependimento, que movia o coração de Saul, Deus não lhe falou. Ou seja, pelo exemplo de Saul, se Deus não lhe responde, você o está buscando pelo motivo errado ou da maneira errada!
É importante ressaltar aqui que com "responder" não estou dizendo "atender". E quando digo "responder", não estou dizendo "responder agora", Deus responde "no tempo oportuno".
Ao contrário do que pode parecer após ouvir o Biblecast, Deus nos incentiva a buscá-lo no momento de angústia:
Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno. Hebreus 4:16.
O outro exemplo do silêncio divino é o de Jesus, citado no Biblecast. O problema é que, no momento mais sombrio antes da cruz, quando Jesus pede para que Deus faça passar dEle o cálice da ira, há a presença de nada menos que Moisés e Elias! E no momento em que Jesus exclama pelo abandono do Pai, assim descreve E.G. White:
"Ele, que fora Um com Deus, sentiu na alma a terrível separação que o pecado causa entre Deus e o homem. Foi o que Lhe arrancou dos lábios o brado de angústia: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?"
Ora, tal circunstância está em perfeita consonância com
Isaías 59:2 ,
2 Coríntios 5:21 e
2 Coríntios 5:19, ou seja, Jesus, por carregar os pecados de todos (ou, se tornar pecado, como diz Paulo) experimentou a completa separação de Deus, não podendo sentí-lo em sua morte.
Eu e você não precisamos carregar sequer os nossos pecados. Nada pode separar-nos de Deus, ou melhor, nada deixa Deus inacessível, ou então, como diz Paulo:
Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor. Romanos 8:38-39.
Segundo Ponto: Deus não anestesia a realidade (alivia o sofrimento):
"Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação; Que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus. Porque, como as aflições de Cristo são abundantes em nós, assim também é abundante a nossa consolação por meio de Cristo. 2 Coríntios 1:3-5"
Obviamente que Deus não anestesia nossas dores, porque as sentimos, mas o que o texto acima nos informa é que há consolo para nossos males. a palavra grega para isso é
Paraklesis, traduzido como "conforto" na versão inglesa da bíblia. Ora, consolo, conforto, alívio querem dizer exatamente o que querem dizer: diminuição do sofrimento. Embora, no salmo 88, não vemos nenhum conforto ou consolo ao sofredor, Paulo deixa claro aos coríntios que Deus "
nos consola em toda a nossa tribulação". Só para constar, Jesus, no evangelho de João, 14:16, diz: "
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre." O Consolador, nesse caso, é o Parakletos, o Espírito Santo que atua para nossa Paraklesis.
Embora a Bíblia nos diga que vamos passar pelo sofrimento, a mesma Bíblia diz que Deus intervém o que nos leva ao:
Terceiro Ponto: Toda vez que Deus interfere na realidade a nosso favor, Ele está dando um bônus, não é a realidade.
O jogador de futebol Fabrice Muamba ficou morto por 78 minutos após uma parada cardíaca durante uma partida pelo campeonato inglês. Algumas especulações foram levantadas e você pode conferí-las
aqui, porém a extrema raridade e a falta de explicações convincentes para o ocorrido podem, muito bem, colocar esse fato na categoria de "milagres".
Compreendo a posição e a intenção dos pastores ao informar que os Milagres são incomuns, muito de vez em quando, e isso tem a ver com a compreensão equivocada, ou uso inadequado, da concepção de "milagre".
Antes, os pastores lançam uma dicotomia entre Milagre versus Realidade, talvez remetendo-se ao binômio: sobrenatural versus natural.
A primeira assertiva, a de que Deus, ao agir a nosso favor, está nos dando um bônus, se sustenta porque o Pai não nos deve nada. Não é Obrigação divina nos dar nada, ao contrário não haveria Graça e a relação de senhorio seria invertida, sendo nós que comandamos a Deus!
É verdade que a "confissão positiva" ou teologia da prosperidade leva muitos cristãos a "determinarem" coisas, achando que Deus tem o dever de seguir-lhes as ordens. Nada mais insano!!!
Deus realmente dá bônus, no sentido de que um bônus é um favor imerecido.
O problema aqui, mais uma vez, é com a intensidade e o reforço dos condutores do biblecast de que a intervenção divina é coisa rara.
Se toda intervenção divina pode ser chamada de milagre, então milagres estão ao nosso redor o tempo todo. Jesus nos diz que Deus alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, para dizer que o mesmo Pai nos dará o que necessitamos. Se negarmos que o que temos vem das mãos de Deus praticamos a ingratidão, admitimos que é o nosso esforço que nos mantém. Jogamos por terra toda a doutrina sobre fidelidade e desmentimos a Bíblia que diz que
"Tudo vem de ti, e nós apenas te demos o que vem das tuas mãos." 1 Crônicas 29:14 NVI.
Mesmo milagres como o que salvou a vida de Muamba, que esteve morto, são comuns hoje em dia. Vá a um culto de oração e você verá.
A ênfase de que as ações de Deus são raras não se harmonizam com a imagem de um Deus que
"faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos." Como dissemos antes, Deus não é o relojoeiro ausente e intervém a todo momento. Nossa prórpia existência já é um milagre.
Compreendemos que, muitas vezes, a ação de Deus a nosso favor não é aquela que nós queremos. Algumas vezes a ação de Deus a nosso favor ocorre como algo que não nos agrada e que gera sofrimento, e isso leva ao quarto ponto:
Deus conhece todas as coisas.
Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Romanos 8:28
Como não vemos o plano todo, não sabemos as complexas redes de eventos que se desencadeiam e o efeito desses eventos sobre nós e sobre os outros. Isto é dizer que, às vezes, coisas ruins são permitidas para o nosso bem.
Ora, nunca é para o nosso bem estar separados de Deus, A Palavra de Deus nos ensina a ser cada dia mais dependentes. A afirmação dos pastores de que
"Às vezes você vai pedir e Deus não vai te responder, e você vai se sentir como quem chora e a mãe não vê: Aprendeu?" não corresponde à verdade extraída das escrituras.
Jesus nos ensina a pedir e buscar sem cessar, tendo esperança de receber:
"Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á.Pois todo o que pede, recebe; o que busca, acha; e a quem bate, abrir-se-lhe-á. Mateus 7:7-8"; "Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora seja demorado em defendê-los? Lucas 18:7".
Obviamente que nem sempre o que julgamos bom é bom de acordo com a visão de Deus, mas a Bíblia não nos diz que Deus não irá responder "pois o que busca, encontra". Voltamos ao ponto 1.
Na parte 3 finalizo minhas considerações acerca do Biblecast. Até lá!